Nossa história a contrapelo

Urik,
Acabei de voltar da farmácia, onde fui comprar um enxaguatório bucal. Poderia ter ido à floricultura comprar flores para mim mesmo, tal qual uma Mrs. Dalloway cearense, mas, ao contrário de você, estou vivo e isso significa que ainda preciso cuidar da minha dentição. Ou melhor, que essa é uma escolha minha, na medida em que não necessariamente preciso escovar os dentes, mas que, se ainda quiser me manter na condição de um ser vivo com alguma cotação no mercado humano das aparências, é melhor que eu os escove. E, no métier das escovações, um enxaguatório bucal encontra sua razão de existir.
Por falar em escovar, me lembrei daquela famosa frase de Walter Benjamin sobre “escovar a história a contrapelo”. Li no Google que, com ela, Benjamin quis dizer que é preciso contar a história na perspectiva daqueles que foram derrotados. Penso: embora estranha, como você mesmo disse na nossa última conversa, nossa amizade sempre foi vitoriosa ao tempo e à distância. Emplacamos vários hits no Grammy invisível dos afetos. Mas vou um pouco mais além e constato que, ainda que campeã, essa amizade foi de algum modo vencida pelo peso incalculável de tua morte. Não penso nisso sob efeito da droga da culpa, mas como um diagnóstico vulgar de que nenhuma maravilha do mundo foi necessária e suficiente para te salvar.
Pensar assim não torna a dor mais leve, mas faz dela algo mais suportável.
Se nossa amizade não foi heroica, todas as palavras de teu criativo vocabulário também não vieram a teu socorro na hora H. Idem, nenhuma das cidades onde teus pés pisaram: Maranguape, Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Lisboa, Rabat. Nenhum endereço do mundo: a Praça da Liberdade, o Passeio Público, o açaí mais próximo, o CH da UECE, o cruzamento da 13 de maio com a Avenida da Universidade, a rua da Bahia, a rua Goiás, a rua Ceará. Nenhum escritor ou escrito de teu inventário afetivo: Franz Kafka, James Joyce, o poema “Tarde de Maio” de Carlos Drummond de Andrade, o poema “Mapa” de Murilo Mendes, o conto “A missa do Galo” de Machado de Assis. Nenhuma carta. Nenhuma sinfonia de teu repertório extenso. David Bowie, Charles Mingus, Caetano Veloso, Miles Davis. Nenhuma iguaria: o sorvete de rum com passas da Nestlé, a comida da casa de tua mãe, as cervejas estupidamente geladas nos bares e botequins. Nenhuma pipoca. Nenhum dos teus casos. Nenhum ocaso. Nenhuma biblioteca ou política pública do livro e leitura. Nenhuma figura política de esquerda (o Lula nos salvou do retorno de uma ditadura militar, mas não te salvou de ti mesmo). Nenhuma figura do espectro feminino: Dona Elenita, Tércia Montenegro, Björk, Carrie Fisher, Ethel de Paula, Ingrid Bergman, Ihvna Chacon, a professora Verbena, a Xoxota do Mal, Maria, Marah, Madonna. Nenhuma figura do espectro masculino: Beethoven, Mozart, João Miguel, Benedito, Pedro Rena, Humphrey Bogart, Pablo, Jorge, Felipe, André, Arthur. Casablanca, Hannah and her Sisters, Butch Cassidy, Ammarcord, Angels in America — nenhuma película. Nenhuma presença no reino animal: os grilos e cigarras dos teus áudios bucólicos de Maranguape; o cão Nikos com quem passeavas pelas ruas da Barra do Ceará; o órfão gatinho Dédalus. Igualmente, nenhum elemento nos reinos vegetal e mineral.
Nada nem ninguém serviu de consolo ao escândalo da tua vida que abrigava a sete chaves o segredo de uma morte impronunciável — um dos teus poucos atos sem fala.
Já faz quase 1 mês da tua partida. Escovo os dentes e enxáguo a boca com Listerine. Minha alma está em enxágue constante desde o fatídico 23 de setembro de 2024. Agora ela me pede um pouco de Sol. Talvez por ter pendurado a alma no varal, só agora eu esteja conseguindo escrever. Apesar de termos cursado Letras juntos, as palavras sempre foram mais suas amigas do que minhas; mas elas também sentem sua falta e estão de luto. Pedem que eu as convoque em sua memória, Urik. Tentarei seguir em companhia delas; por mim e por elas. O luto é solitário, mas não estou sozinho.

Estou escrevendo a minha tese e me ocorreu que seu nome poderia ser agora tipo uma conjunção adversativa: mas, porém, contudo, todavia, entretanto. “Urik Paiva” poderia doravante ser sinônimo de “além disso”. Na linguagem ordinária do cotidiano, “urik!” poderia ser agora uma interjeição de saudação do tipo “ave!”, “nossa!”, “salve!”.
Dizem que só as mães têm a capacidade de experimentar o amor em uma espécie de inteireza ou concretude. Não sei em que medida esse discurso é romantização da maternidade, mas (ou urik) nunca senti o amor de forma tão palpável como nos últimos dias. Acho que estou experimentando um tipo de gravidez. O nome da criança será:_____. Não sei se consigo viver sem você. Comprei uma pedra polida de cor verde e ela é para mim o nosso amor. O luto dói. Urik, há uma beleza secreta no luto. Todo mundo deveria poder ter o privilégio de se enlutar pelos seus mortos. Deveríamos ter o Ministério do Luto. Talvez assim alcançaríamos o que alguns chamam utopicamente de “humanidade”. Talvez, nem imaginemos, mas (ou urik) o luto seja um antídoto à barbárie e uma poderosa arma de luta contra essa porca extrema-direita. Não à toa, em nossa estimada língua portuguesa, luto é também um verbo. E isso não é um clichê, é uma felicidade clandestina. Não duvido nada que você tenha maquinado esse pensamento. Lacan manda dizer que sente tua falta, amigo. Desse modo, ficamos por aqui.
Fortaleza, 20 de outubro de 2024.
Renan da Ponte
